Introdução ao Sistema Endocanabinoide Doenças Neurodegenerativas
As doenças neurodegenerativas, como Alzheimer, Parkinson, Huntington e esclerose múltipla, representam um dos maiores desafios para a medicina moderna. Globalmente, essas condições afetam milhões de pessoas e impõem um custo significativo à sociedade. Estima-se que, até 2060, apenas o Alzheimer afetará cerca de 13,9 milhões de indivíduos nos Estados Unidos, dobrando sua prevalência atual. Na União Europeia, mortes relacionadas ao Alzheimer quase dobraram entre 1994 e 2013, evidenciando a progressão alarmante dessas condições.
Além do Alzheimer, a doença de Parkinson afeta cerca de 10 milhões de pessoas no mundo, enquanto a doença de Huntington, apesar de rara, apresenta impactos devastadores nos pacientes e suas famílias. A esclerose múltipla, uma condição autoimune crônica, atinge mais de 2,8 milhões de pessoas, com prevalência crescente em várias regiões.
Diante desse cenário, as opções terapêuticas existentes permanecem limitadas, geralmente focadas no controle dos sintomas. Porém, o avanço nas pesquisas sobre o Sistema Endocanabinoide (SEC) abre novas possibilidades para o tratamento dessas condições, com abordagens que vão além do alívio sintomático para alcançar proteção neuronal e potencial desaceleração da progressão da doença.
O Papel do Sistema Endocanabinoide nas Funções Neuroprotetoras do Tecido Cerebral
O SEC é uma rede reguladora crucial no corpo humano, composta por receptores canabinoides (CB1 e CB2), endocanabinoides (como anandamida e 2-AG) e enzimas que controlam sua síntese e degradação. Ele desempenha papéis fundamentais em processos como memória, humor, inflamação, controle da dor e neuroproteção.
Nos quadros neurodegenerativos, observa-se frequentemente um desequilíbrio nesse sistema, que pode contribuir para a inflamação crônica, morte neuronal e perda de funções cognitivas e motoras. Estudos mostram que a modulação do SEC por meio de compostos naturais, como o canabidiol (CBD), ou sintéticos pode restaurar o equilíbrio, oferecendo benefícios terapêuticos.
O Sistema Endocanabinoide (SEC) desempenha um papel central na proteção do tecido cerebral, regulando mecanismos fisiológicos que envolvem neuroinflamação, estresse oxidativo, excitotoxicidade e apoptose celular. Essas funções são mediadas principalmente por dois receptores, CB1 e CB2, e seus ligantes endógenos, como a anandamida (AEA) e o 2-araquidonoilglicerol (2-AG).
Abaixo, detalhamos os principais mecanismos neuroprotetores do SEC:
1. Controle da Neuroinflamação
A neuroinflamação crônica é uma característica comum de muitas doenças neurodegenerativas. O SEC atua na modulação da resposta inflamatória ao:
- Receptor CB2: Presente principalmente em células imunológicas do sistema nervoso, como microglia e astrócitos, sua ativação reduz a liberação de citocinas pró-inflamatórias (como TNF-α e IL-1β) e aumenta a produção de citocinas anti-inflamatórias (como IL-10). Isso protege o tecido cerebral de danos secundários decorrentes de processos inflamatórios.
- Microglia e Astrócitos: O CB2 regula a ativação dessas células durante insultos neuroinflamatórios, impedindo que elas entrem em um estado hiperativo que exacerbe a neurodegeneração.
2. Mitigação do Estresse Oxidativo
O estresse oxidativo ocorre devido ao acúmulo de espécies reativas de oxigênio (EROs) que danificam lipídeos, proteínas e DNA neuronal. O SEC protege contra esses danos ao:
- Regulação de EROs: Endocanabinoides, como AEA e 2-AG, atuam como antioxidantes diretos, neutralizando radicais livres.
- Ativação do CB1 e CB2: Esses receptores modulam a expressão de enzimas antioxidantes e reduzem a produção de EROs, promovendo a sobrevivência neuronal.
3. Redução da Excitotoxicidade
A excitotoxicidade, causada pelo excesso de liberação de glutamato, leva à morte neuronal. O SEC intervém ao:
- Receptor CB1: Localizado em sinapses glutamatérgicas, o CB1 regula a liberação de glutamato no nível pré-sináptico, diminuindo a hiperatividade sináptica que contribui para a excitotoxicidade.
- Modulação de Cálcio: A ativação do CB1 reduz o influxo excessivo de íons cálcio em neurônios, prevenindo cascatas destrutivas dependentes desse íon.
4. Prevenção da Apoptose Celular
A apoptose, ou morte celular programada, é exacerbada em condições de neurodegeneração. O SEC contribui para a proteção celular ao:
- Ativação do CB1: Esse receptor ativa vias de sobrevivência celular, como a proteína quinase ativada por mitógeno (MAPK), que ajuda a prevenir a apoptose.
- Redução da Liberação de Glutamato: Ao reduzir a excitotoxicidade, o SEC impede a ativação de mecanismos apoptóticos induzidos pelo glutamato.
- CB2 e Reparação Tissular: O CB2 estimula a proliferação de células precursoras neurais e promove a reparação do tecido lesado.
5. Manutenção da Barreira Hematoencefálica
O SEC também desempenha um papel essencial na preservação da integridade da barreira hematoencefálica (BHE), impedindo a entrada de toxinas e patógenos no sistema nervoso central.
- Ativação de CB2: Reduz a permeabilidade da BHE em condições inflamatórias e promove sua reparação.
- Efluxo de Beta-Amiloide: Na doença de Alzheimer, o CB2 facilita a remoção de depósitos de beta-amiloide pela BHE, protegendo contra neurotoxicidade.
6. Promoção da Neurogênese
A ativação do SEC também está associada ao aumento da neurogênese, especialmente no hipocampo, uma região crucial para memória e aprendizado. Essa função é mediada principalmente pelo:
- CB1: Estimula o crescimento e a diferenciação de novos neurônios.
- CBD: Promove a neurogênese independentemente dos receptores CB1 e CB2, sugerindo efeitos adicionais no sistema nervoso.
O desenvolvimento da disfunção sináptica e o envolvimento do ECS em respostas neuroprotetoras. Endocanabinoides produzidos na sinapse glutamatérgica sob condições excitotóxicas atraem células microgliais para perto das espinhas. Ao adotar um fenótipo pró-inflamatório ou pró-sobrevivência, a microglia define amplamente o destino das células e espinhas lesionadas. A sinalização eCB diminui a liberação de neurotransmissores pré-sinápticos, apoia o ciclo glutamato-glutamina e equilibra a transmissão glutamato/GABAérgica. AMPA, receptor de ácido α-amino-3-hidroxi-5-metil-4-isoxazolpropiônico; BDNF, fator neurotrófico derivado do cérebro; CB, receptor canabinoide; EAATs, transportadores de aminoácidos excitatórios; eCBs, endocanabinoides; ER, retículo endoplasmático; GDNF, fator neurotrófico derivado da linhagem de células gliais; Gln, glutamina; Glu, ácido glutâmico; IFNγ, interferon gama; IL, interleucina; mGluRs, receptores metabotrópicos de glutamato; NGF, fator de crescimento nervoso; NMDA, receptor de N-metil-D-aspartato; NO, monóxido de nitrogênio; PGD 2 , prostaglandina D 2 ; QUIN, ácido quinolínico; ROS, espécies reativas de oxigênio; TGFβ, fator de crescimento transformador beta; TNFα, fator de necrose tumoral alfa; VGCC, canais de cálcio dependentes de voltagem.
A ação dos Endocanabinoides e Fitocanabinoides nas Doenças Neurodegenerativas
Doença de Alzheimer (DA)
O Alzheimer é uma das doenças neurodegenerativas mais prevalentes, caracterizada pelo acúmulo de placas de beta-amiloide e emaranhados de proteína tau, que destroem conexões neurais e levam à morte neuronal progressiva. Clinicamente, manifesta-se por perda de memória, dificuldade de raciocínio e mudanças comportamentais.
O SEC desempenha um papel importante na redução da inflamação e do estresse oxidativo associados à doença. O CB1 pode ajudar a proteger os neurônios ao reduzir a excitotoxicidade, enquanto o CB2 promove a remoção de placas de beta-amiloide por células imunológicas no cérebro. O CBD, por sua vez, mostrou potencial em reduzir a formação dessas placas e estimular a neurogênese no hipocampo, uma região crucial para a memória.
Além disso, o CBD ajuda a regular o ritmo circadiano e pode melhorar distúrbios de humor comuns no Alzheimer, como ansiedade e depressão, ao estimular a síntese de serotonina.
Doença de Parkinson (DP)
A doença de Parkinson afeta principalmente os movimentos devido à perda de neurônios produtores de dopamina na substância negra do cérebro. Os sintomas incluem tremores, rigidez muscular e dificuldades de equilíbrio, além de comprometimentos cognitivos em estágios avançados.
O SEC participa da regulação da atividade dopaminérgica. O CB1 regula a liberação de neurotransmissores, enquanto o CB2 tem efeitos anti-inflamatórios significativos, reduzindo a ativação da microglia, uma célula imunológica no cérebro. Estudos demonstram que o uso de agonistas CB2 pode diminuir a inflamação e prevenir a degeneração neuronal.
O CBD também apresenta propriedades neuroprotetoras e pode reduzir efeitos adversos de tratamentos convencionais, como a levodopa, que frequentemente causa discinesia em longo prazo. Além disso, ele auxilia no controle de sintomas não motores, como distúrbios do sono e dor.
Doença de Huntington (DH)
A doença de Huntington, de origem genética, é caracterizada pela destruição progressiva de neurônios no estriado, causando movimentos involuntários (coreia), alterações cognitivas e distúrbios psiquiátricos. Embora rara, seus impactos são devastadores.
Estudos mostram que o CB1 está reduzido em fases iniciais da doença, prejudicando a regulação da excitotoxicidade. A ativação desse receptor demonstrou proteger contra a degeneração neuronal. Por outro lado, o CB2, que aumenta em resposta à inflamação, pode modular a atividade da microglia, reduzindo a inflamação cerebral.
O uso de canabinoides, como o CBD e agonistas CB2, tem mostrado benefícios em modelos experimentais, promovendo a neuroproteção, reduzindo sintomas motores e melhorando marcadores inflamatórios.
Referências :
1 . Kasatkina, L.A.; Rittchen, S.; Sturm, E.M. Neuroprotective and Immunomodulatory Action of the Endocannabinoid System under Neuroinflammation. Int. J. Mol. Sci. 2021, 22, 5431. https://doi.org/10.3390/ijms22115431
2 . Reddy, V., Grogan, D., Ahluwalia, M. et al. Targeting the endocannabinoid system: a predictive, preventive, and personalized medicine-directed approach to the management of brain pathologies. EPMA Journal 11, 217–250 (2020). https://doi.org/10.1007/s13167-020-00203-4