
Cultivo de Cânhamo no Brasil: História, Tentativas e Possibilidades
O cultivo de cânhamo no Brasil desperta cada vez mais interesse, sobretudo diante do avanço das pesquisas sobre a Cannabis industrial e da busca global por matérias-primas sustentáveis. Embora o debate pareça recente, a verdade é que o cânhamo tem uma longa trajetória no país — marcada por tentativas, fracassos, renascimentos e novos ciclos de investimento.
Com base no estudo histórico de Lilian da Rosa, é possível reconstruir uma linha do tempo rica e pouco conhecida, mostrando como o cânhamo já foi pauta de política econômica, de disputas territoriais e de iniciativas privadas ousadas. A seguir, apresentamos um panorama didático, organizado cronologicamente, que explica por que o cânhamo nunca se consolidou como commodity nacional, apesar das inúmeras investidas.
Origens do Cânhamo e Chegada ao Brasil
Para compreender o cultivo de cânhamo no Brasil, é importante lembrar que essa planta acompanha a humanidade há milênios. Evidências arqueológicas apontam seu uso há mais de 5.000 anos, com provável origem na Ásia Central. Ao longo das rotas comerciais antigas, o cânhamo chegou à África, depois à Europa e finalmente às Américas — movimentado pelo mesmo processo de circulação agrícola que trouxe ao Brasil produtos como café, trigo e cana-de-açúcar .
Durante as grandes navegações e a Revolução Industrial, o cânhamo tornou-se essencial para impérios europeus, especialmente para a produção de velas, cordas e tecidos. Não é de estranhar, portanto, que Portugal buscasse reproduzir essa cultura em sua colônia.

As Primeiras Tentativas (1740–1824)
Projetos da Coroa Portuguesa
A primeira fase da história do cultivo de cânhamo no Brasil foi totalmente controlada pela Coroa portuguesa. Entre 1747 e 1824, o governo tentou implantar plantações em:
Santa Catarina
Rio Grande do Sul
Pernambuco
Paraíba
Alagoas
Espírito Santo
Essas iniciativas buscavam dois objetivos fundamentais : Abastecer o Império com fibras para cordoaria e têxteis, já que o cânhamo era insumo estratégico; e fixar populações coloniais em regiões de interesse geopolítico, especialmente no Sul, área disputada com a Espanha.
Os Motivos dos Fracassos
Apesar de insistentes, todas as tentativas fracassaram, principalmente pelos seguintes fatores:
Sementes de má qualidade, deterioradas durante travessias marítimas
Terrenos inadequados ao cultivo
Desinteresse dos colonos, ocupados com culturas mais lucrativas, como o açúcar
Baixo valor pago pela Coroa
Cobrança de impostos e recrutamentos frequentes, que desestimulavam o trabalho
Falta de conhecimento técnico sobre o cultivo
A Real Feitoria do Linho Cânhamo
A experiência de cultivo de cânhamo no brasil mais ousada ocorreu em 1783, com a criação da Real Feitoria do Linho Cânhamo, no Rio Grande do Sul. Inspirada no modelo de plantation, utilizava dezenas de escravos da Fazenda Real de Santa Cruz e funcionou por cerca de 40 anos.
Apesar do investimento, disputas políticas, qualidade do solo e conflitos internos levaram ao fechamento da Feitoria em 1824.

Novo Ciclo Econômico: Modernização e Renascimento (1880–1940)
Após quase meio século sem investimentos significativos, o cultivo de cânhamo no Brasil voltou a ganhar força na transição do século XIX para o XX.
O motivo? Mudanças estruturais na economia brasileira.
Crise do Açúcar e Modernização em Pernambuco
Em Pernambuco, a estagnação do setor açucareiro e a urbanização crescente favoreceram o surgimento de indústrias têxteis. Nesse contexto, o cânhamo ressurgiu como insumo para:
Sacaria para café, arroz e mamona
Cordas
Cabos
Fios diversos
Duas fábricas se destacaram:
Companhia Fábrica de Estopa S.A. (1891)
Companhia Fábrica de Tecidos Cânhamo e Juta (1903), uma das mais relevantes, premiada e tecnologicamente avançada
Ambas, porém, tiveram vida curta.
O Cânhamo Perini no Rio de Janeiro
Um dos episódios mais interessantes do período foi a descoberta do chamado “cânhamo brasiliensis Perini”, encontrado em 1902 por Victorio A. de Perini nas margens do Rio São Francisco.
Perini registrou patente, montou a empresa J. Knight & Perini e recebeu incentivos do governo, incluindo o uso da Fazenda Boa Vista para plantio experimental. As fotos da época (página 19 do arquivo) mostram plantações densas e altas, com produção estimada de até três safras anuais .
Contudo, incêndios, dificuldades técnicas e falta de dados consolidados indicam que o empreendimento não prosperou a longo prazo.
São Paulo e a Busca por Substitutos ao Café
Com a superprodução de café no início do século XX, São Paulo buscou alternativas agrícolas. O Instituto Agronômico de Campinas (IAC) conduziu estudos importantes, testando diferentes variedades, incluindo o cânhamo da Índia e o cânhamo Perini, avaliou rendimento de fibras e adaptabilidade e identificou potencial para tecelagem e celulose.
Durante o governo Vargas, novos incentivos surgiram e até projetos privados foram desenvolvidos para o cultivo de cânhamo no Brasil, como cultivos em São José dos Campos usando o Hibiscus cannabinus, conhecido como “papoula de São Francisco”.
Por que o Cânhamo Não Prosperou no Brasil?
Apesar de três séculos de tentativas, o cânhamo nunca se consolidou como cultura econômica no país. Entre as razões identificadas no artigo estão:
Falta de continuidade das políticas públicas
Disputas internas e desorganização administrativa
Pouca integração entre agricultores, indústria e governo
Competição com culturas mais rentáveis
Dependência tecnológica e de maquinário de outros países
Custo elevado do processo de maceração e beneficiamento
O que a História do Cultivo do Cânhamo no Brasil Revela?
A análise mostra que, embora o cânhamo nunca tenha se tornado uma commodity nacional, ele esteve presente em múltiplos momentos-chave da história econômica brasileira — desde a colonização até a era Vargas.
Essa retrospectiva ajuda a entender: A importância geopolítica da planta no período colonial; O papel das crises econômicas no ressurgimento do cultivo; A relevância histórica da Cannabis como planta industrial e as oportunidades perdidas por falta de planejamento e pesquisa
O cultivo de cânhamo no Brasil é uma história rica, marcada por potencial e frustrações. Hoje, com o avanço das pesquisas e o crescimento da bioeconomia, retomar esse debate é mais do que uma questão histórica — é uma oportunidade de futuro.
O cânhamo já foi considerado alternativa econômica em diferentes ciclos. Agora, diante das demandas globais por sustentabilidade, fibras naturais, bioplásticos e materiais renováveis, o Brasil tem novamente a chance de explorar essa cultura, desta vez com ciência, tecnologia e estratégia.
Quer saber mais sobre a historia do cânhamo no Brasil, acesse nosso canal no youtube ou nosso blog para mais informações.
Referências :
1. da Rosa, Lilian. (2018). Cultivo do cânhamo no Brasil.
2. https://doi.org/10.1590/1982-3533.2024v33n2.269846